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Esclerose Múltipla: Pseudosurtos e o fenômeno de Uhthoff

Uma das grandes novidades para o paciente recém diagnosticado com esclerose múltipla (EM) é o conceito de surto de EM. Alguns pacientes são diagnosticados após um surto clínico e tem familiaridade com aquele evento específico, mas faltam exemplos do outras possibilidades.

Algumas vezes, a reativação transitória de eventos anteriores preocupa bastante os pacientes, que em avaliação clínica escutam – “isto foi um pseudosurto” – e passam a acreditar que aquele fenômeno foi uma fantasia de sua mente, mas não é bem assim. Pseudosurtos são eventos reais, com base fisiológica. Mas vamos com calma, primeiro vamos entender o que é um surto.

 

O que é um surto de Esclerose Múltipla?

Durante muitos anos tentou-se estabelecer quais os critérios que caracterizavam um surto de EM. Essa caracterização foi necessária sobretudo para que conseguíssemos medir clinicamente a atividade inflamatória da doença e entender se as medicações que eram testadas para tratamento da EM as funcionariam.

Os cientistas, então, entraram em acordo que os surtos deveriam ser caracterizados por quatro condições:

  1. Surgimento de alterações neurológicas novas ou piora de sintomas neurológicos pré-existentes associados a esclerose múltipla;

  2. Ter duração de 24h ou mais;

  3. Ocorrer na ausência de febre ou sintomas sistêmicos sugestivos de infecção;

  4. Ser precedido por 30 dias de estabilidade clínica.

 

O sistema nervoso (SN) é topograficamente e hierarquicamente organizado. De modo que, quando um paciente tem um sintoma neurológico novo ou alteração neurológica nova, o médico busca juntar todos os sintomas e prever a localização da lesão inflamatória. Isso nos permite classificar e combinar padrões e locais de perda de força, sensibilidade, coordenação ou acuidade visual e entender – esta é uma alteração nova. Ou ainda, esta é uma piora evidente de uma lesão anterior.

Sim, para o paciente, a primeira condição característica de surto é difícil de identificar sozinho. Portanto, é importante manter a comunicação com seu médico ou buscar ajuda no pronto socorro mais próximo se algo assim acontecer.

A segunda condição se explica pela característica inflamatória da lesão na EM. Vamos fazer um comparativo. Lembre de quando era criança e teve algum machucado brincando, como um joelho ralado. O que aconteceu? O corte logo apareceu, depois veio o inchaço, a dor…tudo ainda permaneceu por alguns dias e só depois começou a melhorar certo? Quando os neurônios e suas células vizinhas (que chamamos células da glia) inflamam, por horas e as vezes dias, várias células inflamatórias são atraídas para o local da lesão e espera-se que haja uma piora de sintomas que dura mais de 24h, seguida por um período de estabilidade, o platô (cerca de três dias de estabilidade de sintomas), e então começa a acontecer uma melhora. É por isso que dificilmente aquele formigamento ou sensação de fraqueza leve, que muda de local ou piora e melhora ao longo do mesmo dia caracteriza um novo surto.

Mas por que não pode haver febre ou infecção? Quando estamos doentes a temperatura do nosso corpo tende a se elevar, mesmo quando não há febre mensurada no termômetro. Essa elevação de temperatura serve para que nossos mecanismos de defesa contra vírus, bactérias e afins fiquem em um nível ótimo de funcionamento, ativando as enzimas corretas para nos livrar destes patógenos. Acontece que a mesma elevação de temperatura altera a transmissão dos impulsos nervosos e pode dar a sensação do retorno de sintomas do passado, que há muito haviam melhorado.

A quarta condição compartilha um pouco dos motivos da segunda. Como o processo inflamatório pode perdurar por dias, considera-se que dentro de 30 dias o organismo como o todo ainda está inflamado e o SN instável, portando novas lesões podem ficar evidentes em outras partes do SN central e originarem mais de um sintoma dentro desta temporalidade.

E o que é pseudosurto ou fenômeno de Uhthoff?

A EM é uma doença conhecida e estudada há mais de 100 anos, bem antes de termos a nossa disposição exames de imagem como a ressonância magnética – que só fica disponível para uso clínico a partir da década de 1990. Desse modo, sempre foi muito importante caracterizar clinicamente as queixas dos pacientes para compreender o que estava ocorrendo.

Nos idos de 1890, um oftalmologista alemão chamado Wilhelm Uhthoff sempre se deparava com a avaliação de pacientes que tinham tido previamente surtos de neurite óptica (inflamação do nervo óptico) e que retornavam a seu consultório com borramentos visuais flutuantes, com duração inferior a 24h, ocorrendo no mesmo local da neurite prévia. Ele então descreveu essas alterações paroxísticas (ou seja, transitórias, completamente reversíveis e algo imprevisíveis) em um artigo científico. Após este fato, esse fenômeno – um falso ou pseudosurto – no nervo óptico ficou conhecido como fenômeno de Uhthoff.

Com a evolução da pesquisa médica e o aprofundamento do estudo desse fenômeno, verificou-se que ele não era restrito ao nervo óptico. Em verdade, ele poderia acontecer em sítios de lesão prévia em qualquer topografia do sistema nervoso, levando a formigamentos, perdas de força, piora do controle esfincteriano e mesmo lentificação de pensamento transitória. E não somente na esclerose múltipla. Qualquer lesão no sistema nervoso central pode motivar um fenômeno de Uhthoff, AVCs, traumas, lesões infecciosas ou desmielinização.

Mas por que isso acontece na EM? Ora, no SN os neurônios, para exercerem corretamente suas funções, precisam se comunicar uns com os outros. Uma das formas de isso acontecer é através da geração de uma diferença de potencial elétrico na superfície da membrana celular do neurônio, que gera um impulso nervoso.

O neurônio é uma célula composta basicamente por: corpo celular, dendritos e axônio (Fig. 1). Classicamente, os impulsos nervosos se iniciam no corpo celular, percorrem o axônio e permitem que os dendritos de um neurônio liberem neurotransmissores, que serão capturados pelos dendritos do neurônio seguinte fazendo com que a informação necessária seja transmitida.

Figura 1. O neurônio e seus componentes.
Fonte: Neurônio: o que é, tipos, função, estrutura – Mundo Educação (uol.com.br)

Existem neurônios de vários formatos e tamanhos, alguns podem ter metros de comprimento e a comunicação entre eles precisa ser muito rápida e muito precisa. Para isso, uma célula auxiliar chamada oligodendrócito – que tem em sua composição a proteína mielina – envolve o axônio e gera áreas de isolamento elétrico, fazendo com que a chegada do impulso nervoso não precise percorrer todo o axônio, o impulso pode saltar de uma área isolada para outra e ficar muito mais rápido.

Mas ora, o que ocorre na EM? Desmielinização. Portanto, o paciente com EM tem várias áreas em que o impulso não conseguirá passar com a mesma velocidade ou mesmo em que o impulso nervoso se encontra bloqueado (Fig.2).

Figura 2. O neurônio na esclerose múltipla.
Fonte: Esclerose múltipla: o que é e tratamento – Mundo Educação (uol.com.br)

Algumas vezes, essa redução ou ausência de transmissão de impulso é tão grande e rápida que o paciente percebe o déficit novo – este é o surto clínico de EM. Em outros momentos, a lesão pode ser silenciosa clinicamente, ou seja, a área de desmielinização é menor ou neurônios vizinhos suprem a função do neurônio afetado – esta, em geral, é a desmielinização que aparece somente no exame de ressonância.

Mas e o fenômeno de Uhthoff? Se ele não é um surto clínico e nem uma lesão radiológica, o que ele é? Ora, com o passar do tempo, após o surto clínico ou a lesão radiológica, a inflamação reduz e aquela área afetada vai se recuperando, porém a recuperação na maioria das vezes é incompleta. A remielinização do axônio fica com áreas de falha ou mesmo áreas de remielinização de espessura muito fina. Nestas áreas a neurotransmissão fica ineficiente, lenta e pouco precisa. Ocorre ainda uma outra particularidade, a polarização da membrana do axônio, que permite a transmissão do impulso nervoso, é bastante sensível a variações de temperatura corpórea, ainda que variações muito pequenas.

Sendo assim, em situações de aumento fisiológico de temperatura corpórea, como infecções, febre, exercício físico, estresse mental e dias de calor intenso, a transmissão do impulso fica ainda mais prejudicada, pois a superfície do axônio tem uma regulação de polaridade bastante prejudicada, gerando impulsos erráticos, lentos e ineficazes. Este é o fenômeno de Uhthoff ou pseudosurto – uma falha transitória da condução de informações por neurônios que possuem sequelas de desmielinização.

O que podemos fazer para que essas sensações parem?

A primeira coisa a fazer é identificar o que pode estar causando essa variação de temperatura.

No caso das infecções, temos de tratá-la, lembrando que do tratamento até a resolução da infecção transcorrem alguns dias, logo, será um período em que se esperam fenômenos de Uhthoff mais frequentes.

No caso de dias quentes, tentar utilizar vestimentas mais leves, caprichar na hidratação, tentar arejar mais a casa ou o ambiente de trabalho, tomar banhos mais frequentes. Nos dias frios, o horário do banho quente pode desencadear o fenômeno, que tende a durar até uma hora depois de seu início. Para mulheres, o período perimenstrual também pode desencadear estas alterações transitórias, pois há um aumento natural da temperatura corpórea.

Em períodos de estresse mental, buscar ajuda para a saúde mental, para que consiga melhorar os períodos de descanso, alimentação e lazer. Algumas vezes, pode ser necessário o uso de medicações, que deve ser avaliado caso a caso com seu médico.

Mas e o exercício físico? Meu médico quer que eu faça exercício, mas meu corpo fica quente e formiga? Sim, ao iniciar uma atividade física nova, especialmente se você for sedentário(a) pode causar o fenômeno. Porém, à medida que o organismo vai se adaptando a atividade, a intolerância a variação de temperatura vai diminuindo – espera-se que em um tempo médio de três meses o benefício já apareça – e haverá redução da frequência do fenômeno em praticamente todas as outras ocasiões.

Também é possível a utilização de medicações para a redução do fenômeno, como por exemplo, a fampridina. Esta substância age nos canais de potássio da membrana celular e reduz a neurotransmissão errática, mas em geral, reservamos a medicação para casos em que há comprometimento da capacidade de caminhar.

REFERÊNCIAS

  1. Frohman, T. C., Davis, S. L., Beh, S., Greenberg, B. M., Remington, G., & Frohman, E. M. (2013). Uhthoff’s phenomena in MS—clinical features and pathophysiology. Nature Reviews Neurology, 9(9), 535-540.

  2. Popescu, B. F. G., & Lucchinetti, C. F. (2012). Pathology of demyelinating diseases. Annual Review of Pathology: Mechanisms of Disease, 7, 185-217.

  3. Smith, K. J., & McDonald, W. I. (1999). The pathophysiology of multiple sclerosis⋮ the mechanisms underlying the production of symptoms and the natural history of the disease. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B: Biological Sciences, 354(1390), 1649-1673.

  4. The, I. G. (1993). Interferon beta-1b is effective in relapsing-remitting multiple sclerosis. clinical results of a multicenter, randomized, double-blind, placebo-controlled trial. Neurology, 43(4), 655-61.

  5. Yuste, R. (2015). From the neuron doctrine to neural networks. Nature reviews neuroscience, 16(8), 487-497.